Espero.
Desde a manhã, eu a espero numa angústia que se multiplica com as horas. Partiu
ao encontro de outro. Receio que não volte, que meu corpo não mais a seduza. É
quase noite, continuo nu, pronto para recebê-la. Passei perfumes que a
fascinam, preparei-lhe os pratos favoritos, conservo portas e janelas abertas,
busquei-a no jardim não sei quantas vezes, nenhum sinal. Espero. Cada vez mais
aflito, eu a espero.
Talvez esteja com medo de mim. Tentei
estrangulá-la, é verdade, apertei-a até a pele arroxear e julgá-la morta. Resistiu
ao assédio, lutou com bravura pela vida, recuperou-se – e descobri seu encanto.
Ódio e amor possuem origens comuns, frequentam
o mesmo espaço. Tal o nosso caso. Dividimos a carne e o sangue. Ela, mais
forte, manteve a personalidade; eu mudei, sem arrependimento. Desenvolvi
instintos, resgatei paixão pela fragilidade, gozei a dor. Descobri a ternura da
mãe pelo feto. Feto, afeto... Assustado com o comportamento, reagi. Esganei-a
de novo. Em meio à investida, seus olhos negros moveram-se em desordem,
afogados na tez de leite. A delicadeza me enfeitiçou, sucumbi por completo.
Desde então,
amo-a sem recaídas de assassino. Juntos dia e noite, incomoda-me apenas nas
madrugadas: não tolera a separação do sono. Ante a solidão e meu silêncio,
cutuca-me, à procura de penetração carnal. Acordo em sobressalto, logo me rendo
a seus requebros. Calam fundo, porém matam-me de prazer.
Hoje de
manhã, experimentei a dor do parto. De fato, ela nasceu. Rompeu-me as entranhas
sem pressa. Primeiro surgiram os olhos, depois a cabeça e o tronco. As asas
apareceram recolhidas, molhadas. O abdome emergiu por último. Livre para o
mundo, esfregou as patas e bebeu de meu sangue. Jamais fui tão feliz.
A pequena
larva tinha evoluído dentro de mim até culminar na mosca que eu contemplava
sobre a pele, ora verde, ora azul, com lampejos dourados, variáveis conforme o
ângulo da luz. Sua carne era minha carne. Diferençávamos apenas na forma. Com
olhar de incesto, admirei-lhe a beleza. Com orgulho de pai, quis exibi-la.
Tomei, num
momento fugaz, o choque da realidade: eu a havia criado na coxa, suportado a
gestação, parido. Estava louco. Louco. A consciência da loucura destroçou-me.
Ergui a mão, preparei o infanticídio, não consegui executá-lo. O instinto
maternal prevaleceu. Eu a adorava mais que a qualquer outro ser. Sim, éramos
um.
Por amor, decidi incubar seus ovos. Que
ela me usasse como bem entendesse, eu aceitaria o padecimento. Que tivesse
centenas de filhos, eu cuidaria de todos. Com a entrega, desejava apenas gerar
vidas, alimentá-las, eternizar o milagre.
Tentei acariciá-la, agachou-se, ameaçou
voar. Sim, deveria sair de casa, dar uma volta pela vizinhança, encontrar um
companheiro para fecundá-la. Só assim me tornaria ninho outra vez.
Com cuidado, muito cuidado, encostei o
indicador em sua cabeça. Galgou-o até a falange. Levantei-me devagar, abri a
janela, lancei-a ao espaço. Em êxtase, acompanhei-lhe o voo nupcial. Pela
primeira vez em setenta anos, senti-me útil ao mundo. Nunca é tarde, diziam com
razão os antigos.
Desde a manhã, espero. Angustiado, eu a
espero.
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