domingo, 16 de agosto de 2015

Ninho

Espero. Desde a manhã, eu a espero numa angústia que se multiplica com as horas. Partiu ao encontro de outro. Receio que não volte, que meu corpo não mais a seduza. É quase noite, continuo nu, pronto para recebê-la. Passei perfumes que a fascinam, preparei-lhe os pratos favoritos, conservo portas e janelas abertas, busquei-a no jardim não sei quantas vezes, nenhum sinal. Espero. Cada vez mais aflito, eu a espero.  
Talvez esteja com medo de mim. Tentei estrangulá-la, é verdade, apertei-a até a pele arroxear e julgá-la morta. Resistiu ao assédio, lutou com bravura pela vida, recuperou-se – e descobri seu encanto.
Ódio e amor possuem origens comuns, frequentam o mesmo espaço. Tal o nosso caso. Dividimos a carne e o sangue. Ela, mais forte, manteve a personalidade; eu mudei, sem arrependimento. Desenvolvi instintos, resgatei paixão pela fragilidade, gozei a dor. Descobri a ternura da mãe pelo feto. Feto, afeto... Assustado com o comportamento, reagi. Esganei-a de novo. Em meio à investida, seus olhos negros moveram-se em desordem, afogados na tez de leite. A delicadeza me enfeitiçou, sucumbi por completo.
          Desde então, amo-a sem recaídas de assassino. Juntos dia e noite, incomoda-me apenas nas madrugadas: não tolera a separação do sono. Ante a solidão e meu silêncio, cutuca-me, à procura de penetração carnal. Acordo em sobressalto, logo me rendo a seus requebros. Calam fundo, porém matam-me de prazer.  
          Hoje de manhã, experimentei a dor do parto. De fato, ela nasceu. Rompeu-me as entranhas sem pressa. Primeiro surgiram os olhos, depois a cabeça e o tronco. As asas apareceram recolhidas, molhadas. O abdome emergiu por último. Livre para o mundo, esfregou as patas e bebeu de meu sangue. Jamais fui tão feliz.
          A pequena larva tinha evoluído dentro de mim até culminar na mosca que eu contemplava sobre a pele, ora verde, ora azul, com lampejos dourados, variáveis conforme o ângulo da luz. Sua carne era minha carne. Diferençávamos apenas na forma. Com olhar de incesto, admirei-lhe a beleza. Com orgulho de pai, quis exibi-la.
          Tomei, num momento fugaz, o choque da realidade: eu a havia criado na coxa, suportado a gestação, parido. Estava louco. Louco. A consciência da loucura destroçou-me. Ergui a mão, preparei o infanticídio, não consegui executá-lo. O instinto maternal prevaleceu. Eu a adorava mais que a qualquer outro ser. Sim, éramos um.
Por amor, decidi incubar seus ovos. Que ela me usasse como bem entendesse, eu aceitaria o padecimento. Que tivesse centenas de filhos, eu cuidaria de todos. Com a entrega, desejava apenas gerar vidas, alimentá-las, eternizar o milagre.
Tentei acariciá-la, agachou-se, ameaçou voar. Sim, deveria sair de casa, dar uma volta pela vizinhança, encontrar um companheiro para fecundá-la. Só assim me tornaria ninho outra vez.
Com cuidado, muito cuidado, encostei o indicador em sua cabeça. Galgou-o até a falange. Levantei-me devagar, abri a janela, lancei-a ao espaço. Em êxtase, acompanhei-lhe o voo nupcial. Pela primeira vez em setenta anos, senti-me útil ao mundo. Nunca é tarde, diziam com razão os antigos.
Desde a manhã, espero. Angustiado, eu a espero.


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