quinta-feira, 30 de abril de 2015

Sonhar é preciso



          Dizem que nós, os escritores, deliramos mais que os psicanalistas. Tomara que seja verdade. A ficção, às vezes, se confunde com a realidade, quando não a precede, e temos sérias dificuldades para separar uma coisa da outra. Como o ser humano não vive sem fantasia, seguimos em frente, felizes da vida, um pé no chão, outro no sonho. 
Mas escritores e psicanalistas não estamos sozinhos. O desvario de outros profissionais talvez ultrapasse o nosso. Por exemplo, o dos cientistas. Eles subjetivamente se outorgaram o título de objetivos. Existe alucinação maior? Assim diplomados, falam asneiras com ar doutoral, como se jamais incorressem em erro. Subjetivamente absolutos. Cientistas imaginam possibilidades e hipóteses, vendem-nas como fatos, e a mídia e as pessoas as compram como verdade. Vivem, muitas vezes, num mercado de sonho. Mais acima, talvez, no mundo das nuvens.
          Um dos campos mais delirantes da ciência é a cosmologia, a especialidade que estuda a origem e a evolução do Universo. De tanto alarde, até parece que Big Bang, buracos brancos, universos paralelos, supercordas, dimensões múltiplas, flutuações quânticas são fatos, e não meras hipóteses de trabalho, transitórias. Até parece que o superstar Stephen Hawking nunca fala bobagem. Fala, sim, muita. Tem até a coragem de desdizer-se. Virtude rara.
          Mesmo os dois pilares centrais da física atual, a relatividade de Einstein e a mecânica quântica, mostram-se incompatíveis em certos pontos: um ou outro pode estar errado. E então?
          Na verdade, todos os seres humanos, de uma ou outra forma, deliramos. Cientistas, psicanalistas, escritores, todos nós vivemos em desvario. Ainda bem. O delírio, o erro, a hipótese, o romance, a poesia, o divã, a religião, a ciência, a filosofia são formas de compreender o mundo, essa elusiva e ilusória impressão de que existe uma verdade no fim do arco-íris, onde capturaremos o pote de ouro com as mãos ou o cérebro. Quanto mais sabemos, mais parecemos ignorar. O delírio mitiga essa falta, mascara nossa crônica ignorância, garimpa o sonho nosso de cada dia. Ele é nossa humanidade com 100% de pureza.


quarta-feira, 29 de abril de 2015

Leitura é questão de saúde pública


          Livros divertem, instruem, transmitem sabedoria, levam-nos através do tempo, do espaço e do sonho, guardam memórias, apuram o senso estético. Livros trazem outro benefício, pouco divulgado, de suma importância. São questão de saúde pública. Isso mesmo. Saúde pública.
          Cientistas em todo o mundo comprovaram que quem lê muito, sobretudo ficção (romances, contos, novelas, poesia), isto é, quem exercita bastante a imaginação, tende a ter menos a doença de Alzheimer. Em outras palavras, a leitura ajuda a evitar que a gente fique gagá. Parece que, igual a outros órgãos, quanto mais se ativam os miolos, melhor eles agem e reagem. Posto de outra maneira, livro é musculação para o cérebro: deixa os neurônios saradaços. Você pode comprovar em sua família. Provavelmente seus avós e bisavós que liam muito chegaram à velhice bem lúcidos. Velhice e lucidez todo mundo quer. As alternativas não são nada agradáveis.
          Os benefícios do livro não param por aí. A leitura atua em regiões do cérebro, situadas no meio e na parte de trás da cabeça, ligadas à imaginação e à visão, enquanto os filmes e a televisão agem apenas na parte posterior, vinculada ao córtex visual. É como se a leitura criasse um filme em nossa mente e nós, ao mesmo tempo em que criamos o filme, também assistíssemos à sua exibição. No futebol, seria como bater o escanteio e correr para cabecear no gol.
          É assim que a leitura funciona. Excita nossa cabeça, deixa-nos saudáveis por mais tempo. Isso explica, ainda, porque a leitura exige um pouquinho mais de esforço. Mas o resultado compensa. Compensa não apenas na diversão, no entretenimento, no conhecimento adquirido. Na saúde também. Saúde pública.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Caminhando pelo Nepal

Enquanto caminhava pelo vale do Annapurna, a mais de 4000 metros de altitude, como em permanente meditação transcendental, eu invadia o Nirvana, curtia o vazio. Sentia-me não parte do mundo, mas o próprio mundo. O ar corria em minhas veias; o céu era minha pele; as montanhas, meus ossos; as matas, meus pelos. As aves tinham meus olhos, eu pairava sobre o Himalaia, vasto como a atmosfera, fruía as correntes de vento. A beleza da paisagem impregnava meu corpo, meu corpo se espalhava na paisagem. Eu era tudo, estava em tudo e tinha tudo em mim (trecho de meu livro de viagens "Retalhos do Mundo", no capítulo que fala sobre o Nepal)

segunda-feira, 27 de abril de 2015

A simplicidade da partida - um poema dos Andes

Os quíchuas, descendentes dos incas, formam a maior parte da população peruana. Escutei este poema perto de Machu Picchu, mantido pela tradição oral, hoje traduzido para o espanhol. Parece que foi criado por um Dom Quixote dos Andes. A simplicidade faz sua beleza. Leva o minimalismo no coração.

Hoje é o dia da minha partida.
Era. Hoje não vou mais, fica para amanhã.
Partirei tocando
uma flauta de osso de mosquito,
minha bandeira será uma teia de aranha,
de um ovo de formiga farei meu tambor.
Minha montaria? Minha montaria
será um ninho de beija-flor.


O provérbio mais famoso dos quíchuas é "ama sua, ama quella, ama llulla", ou seja: "não roubar, não ser preguiçoso, não mentir". Brasília podia adotá-lo.

domingo, 26 de abril de 2015

Nepal, um apelo

O Nepal é um país pobre, mas não miserável. O povo sorri, sem economia, para todos. É hospitaleiro de nascença. Abre a casa aos desconhecidos. As tradições da terra me encantam: festival das luzes, ano-novo, dia em que os homens trocam de papel com as mulheres, a deusa viva da Durbar Margh, em Kathmandu, que resolve todos os problemas de ordem amorosa, financeira, de dor de cotovelo e doenças. O terremoto de ontem trouxe o caos justamente à parte mais populosa do país e também a mais bela. Muita gente morreu. A atual contagem de 2000 mortos deverá subir, e muito. As pequenas vilas que escalam os Himalaias ainda revelarão muitos corpos. Ao redor de Pokhara, um dos mais belos cenários do planeta, há lugares aonde se chega apenas a pé, após três, quatro dias de caminhada. Os estragos só serão revelados durante a semana. Poucos conhecem Ulleri, Jagat, Dharapani, Pisang, Manang, Muktinath, Lete, Ghandrukh, Ghorepani, Tatopani, mas ali vive gente encantadora. Gente que merece a solidariedade do mundo. Gente como a gente em extrema necessidade. O Nepal, conhecido como Shangrilá, é um paraíso que hoje precisa da ajuda da Terra.

sábado, 25 de abril de 2015

A queda do céu - uma fábula

       No antigo reino chinês de Li, há muitos séculos, um sábio previu que o céu cairia sobre a Terra e todos morreriam. A princípio, poucos acreditaram. De repente, o chão tremeu. O sábio disse que a sustentação do céu começava a ruir, e muitos concluíram que algo estranho de fato acontecia. Então veio a tempestade. Ventos, raios, estrondos, casas derrubadas, arrozais destroçados. O sábio alertou: - Está chegando a hora!
      Os habitantes de Li se convenceram do fim. Todos pararam de trabalhar, à espera da fatal queda do céu. Para que trabalhar, se tudo logo acabaria? Andavam olhando para cima, aguardando o grande momento. Logo faltou comida, mas ninguém se arredou da vigília. Em pouco tempo, velhos e crianças começaram a morrer, fracos e famintos, porém quem tinha forças continuou grudado no céu. Um dia, o último cidadão de Li morreu de fome.
       Ao ver que a previsão se concretizara, o velho sábio se mudou da cidade. Foi para Sh´ian dizer que o céu estava para cair sobre a Terra. Tinha o exemplo de Li para provar o poder de suas palavras.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Trem de mineiro

     Um dos caminhos mais bonitos do Brasil vai de Tombos, na divisa MG-RJ, até o Pico da Bandeira, na divisa MG-ES. Serras, florestas e cachoeiras fazem festa para os olhos durante todo o trajeto de 200 km. Vale a pena explorar a região, nem que seja através do Google Earth.
     Ao atravessar o município de Pedra Dourada, passei diante de uma fazenda, onde um senhor de bigode branco, chapelão de palha e cigarro apagado na orelha acompanhava, curioso, debruçado em cima de uma porteira, o grupo de trekkeiros do qual eu fazia parte. Ele me reteve com uma pergunta:
     - O moço me desculpe, mas o que ocês estão fazendo?
     - Caminhando.
     - Caminhando por quê, moço?
     - Porque a gente gosta.
     - Gosta de caminhar assim sem mais nem menos, só por caminhar, ao léu, ao deus-dará, debaixo desse sol bravo?
     - Isso.
     - Eita falta do que fazer, hein, moço?
   

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Paraísos improváveis (1)

Paraíso 1 Ladakh
   
     Há muitos paraísos improváveis no mundo. Um pode estar aqui, ao lado da gente, sem que desconfiemos. Outros se encontram a milhares de quilômetros. Entre estes, o Ladakh, no norte da Índia, na fronteira do Paquistão, China e Tibete, é dos meus preferidos. A região enfrenta todo tipo de confronto: religioso, entre hinduístas e muçulmanos; terrorista, entre os defensores da anexação da região ao Paquistão e os indianos; bélico, pois uma guerra entre Índia e Paquistão, bastante plausível, pode descambar em explosão de bombas atômicas que ambos os países possuem; humanitário, pois abriga um grande contingente de refugiados tibetanos, expulsos pelos chineses nos tempos de Mao Tse Tung, quase todos budistas; tectônico, uma vez que o choque das placas tectônicas do subcontinente indiano e da Ásia continua acontecendo, levantando as montanhas e provocando terremotos.
      Onde fica, então, o paraíso? Basta andar pelo Ladakh, ver a beleza do Himalaia, suas duas cadeias cortadas ao meio pelo rio Indus com águas azuladas, subir ao alto dos picos e observar a extensão da cordilheira que some de vista, pegar uma das trilhas e seguir entre árvores estranhas e pedras polidas pelo gelo. Sentir o cheiro da terra, totalmente diferente do brasileiro. Ver, ainda, os vários mosteiros budistas e participar de suas orações pela paz no mundo. Experimentar o chá da tarde com eles ou com os aldeões que servem um pão delicioso, feito na hora. Ouvir o canto dos lavradores ao cuidar das plantações, ou o som das trombetas que ecoam no Himalaia. Ver a Lua e as estrelas quase ao alcance dos dedos. Visitar vilarejos que parecem um século atrás no tempo. Olhar o rosto das pessoas que, diante de uma difícil realidade, não escondem o sorriso e a simpatia. O Ladakh conquista o paraíso a cada dia.        

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Manifesto pacifista

Neste início de milênio, o mundo gasta em torno de um trilhão e meio de dólares com os orçamentos militares, quase a metade pelos Estados Unidos. Ao longo do século 20, num cálculo conservador, os gastos com armas passaram de 50 trilhões de dólares. As guerras produziram, direta e indiretamente, quase 200 milhões de cadáveres, segundo o historiador Eric Hobsbawm. Conclusão: cada cadáver custou 250 mil dólares!
Isso mesmo, faça a conta: 250 mil dólares para eliminar uma pessoa. O que é mais barato, matar ou manter a vida? Quantos neste mundo conseguem amealhar 250 mil dólares ao fim de décadas de trabalho? Quantas escolas podem ser construídas com essa fortuna? Por isso, a indústria bélica busca e fomenta conflitos em todo o planeta. Os países perdem, ela sempre sai ganhando. Matar dá muito dinheiro.
Cabe aqui uma pergunta para a espécie que se ufana da inteligência e da civilização: por que ainda preferimos semear a morte que manter a vida?
O convívio - com a aceitação das diferenças inerentes a cada povo e cada cultura - é uma utopia. A violência é a realidade. Agora e sempre?

terça-feira, 21 de abril de 2015

Impacto de asteroide na Terra?

Hoje encontrei um amigo preocupado com a queda de asteroides na Terra. Depois dos dinossauros, seria a vez dos humanos desaparecerem sob o bombardeio celestial? Tudo porque, na semana passada, uma nova ameaça foi anunciada. O asteroide nos atingiria dentro de alguns meses. A notícia carece de fundamento. A NASA monitora centenas de objetos próximos à Terra, os chamados NEO´s (Near Earth Objects) e atribui a cada um deles duas escalas de risco, a Escala Palermo e a Escala Torino, para os próximos 100 anos. Nenhum objeto está em rota de colisão conosco. Há maior probabilidade de a humanidade desaparecer por seu próprio desatino que por impacto de corpos celestes. Podemos dormir tranquilos. A tabela de NEO´s foi atualizada hoje, por sinal um dia especial: 4 asteroides passaram pertinho da gente. Um deles, o 2015 HD1, quase deu para pegar com a mão.  

Poema chinês com 3000 anos

Este poema chinês tem ao redor de 3000 anos. O nome do autor se perdeu, não sua arte.

              Linda é a mocinha pobre
         
          A mocinha pobre é linda,
          ela me espreita do canto do muro.
          Eu a amo, nunca a encaro,
          coço a cabeça, não sei o que fazer.
          Linda é a mocinha pobre
          que me presenteia com uma flor vermelha.
          A flor brilha,
          mas o que me seduz é a beleza da mocinha.    
          No prado, ela me oferece a relva mais fresca,
          tão rara, tão bela.
          Não, a relva não é tão bela,

          sua beleza só transparece após o toque da linda mocinha.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Os livros mudam o mundo?




Os livros mudam o mundo? Interferem eles com as pessoas, a ponto de transformá-las e transformar toda a sociedade? Se você acha que não, permita-me discordar. Mudam, sim. Alguns livros têm o extraordinário poder de convencer-nos, seduzir-nos e levar-nos a acreditar em seus argumentos. De quebra, carregam o mundo na esteira de sua lógica. Aliás, carregam até mundos. Um desses livros mexeu não só com a Terra, mas ainda com o Sol, a Lua e os planetas. Refiro-me a um tratado de astronomia que, há mais de 2300 anos, faz a cabeça das pessoas. Adotado pela Igreja como dogma, fez até a cabeça de Deus, que passou a punir quem desacreditava em seus ensinamentos. Ai de quem duvidasse dele. Que obra é essa? Trata-se da multimilenar Do Céu, escrita por Aristóteles, o genial filósofo grego que deu pitaco em todo o conhecimento de sua época, fundou muitas das atuais ciências, além de fazer a cabeça de seu aluno Alexandre, o Grande, que espalharia o conhecimento do mestre até a Índia. Pois Aristóteles defendia que a Terra estava no centro do Universo, cercada por dezenas de esferas em cujo interior tudo girava. Tão convincente foi que, por mais de 1500 anos, o geocentrismo prevaleceu. Muita gente foi para a fogueira por discordar que a Terra estivesse no centro do universo, embora o heliocentrismo tivesse surgido pouco depois da morte de Aristóteles, na própria Grécia, com Aristarco de Samos. O mais engraçado é que, em pleno século 21, um quinto dos norte-americanos e dos europeus ainda continua aristotélico, isto é, acredita que o Sol gira ao redor da Terra. Livros fazem ou não fazem a cabeça da gente?