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sexta-feira, 21 de agosto de 2015
quarta-feira, 19 de agosto de 2015
PAIXÃO DOENTIA
O que é a paixão? Uma fera solta na
selva da vida que devemos enfrentar com unhas, dentes e riscos? Ou negar a paixão seria a grande isca para a fúria do animal selvagem que habita
o fundo da alma humana?
Henry James, escritor norte-americano que se tornou
inglês vitoriano, trabalha essas questões em sua novela de oitenta páginas A Fera na Selva. E, em tão curto espaço, deixa-me perplexo com
sua intuição, talento, capacidade criadora, além da profunda análise
psicológica que antecipa e ultrapassa Freud.
A
Fera na Selva é um mergulho na complexidade da consciência que foge a
regras, estudos e convenções. Trata do relacionamento de John Marcher e May
Bartram, um casal inglês marcado desde a juventude pela impressão de que algo
raro e estranho, ao mesmo tempo prodigioso e terrível, aconteceria a John, e
ambos transformam essa premonição em motivação para a vida. Aguardar o evento
extraordinário, que aparentemente nunca chega, marca o relacionamento de John e
May. Esperam Godot com meio século de antecedência.
John é extremamente egoísta. Ela se mostra algo simplória, porém, ao final da vida, atina que o grande evento
havia ocorrido e reza para que o companheiro não o descubra, pois a revelação
lhe abalaria a sanidade. Ao lado do túmulo de May, John acaba inferindo a
verdade, final e absoluta: o vazio. Com esse enredo, singelo à primeira vista,
Henry James tece uma trama envolvente, refinada, perspicaz, densa, que prende a
atenção.
Deve-se viver ou evitar a paixão? Para
Henry James, ela vale a pena. Concordo. Uma boa paixão nos garante a vida.
Nem que seja por um dia. O resto fica para a insanidade.
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domingo, 16 de agosto de 2015
Ninho
Espero.
Desde a manhã, eu a espero numa angústia que se multiplica com as horas. Partiu
ao encontro de outro. Receio que não volte, que meu corpo não mais a seduza. É
quase noite, continuo nu, pronto para recebê-la. Passei perfumes que a
fascinam, preparei-lhe os pratos favoritos, conservo portas e janelas abertas,
busquei-a no jardim não sei quantas vezes, nenhum sinal. Espero. Cada vez mais
aflito, eu a espero.
Talvez esteja com medo de mim. Tentei
estrangulá-la, é verdade, apertei-a até a pele arroxear e julgá-la morta. Resistiu
ao assédio, lutou com bravura pela vida, recuperou-se – e descobri seu encanto.
Ódio e amor possuem origens comuns, frequentam
o mesmo espaço. Tal o nosso caso. Dividimos a carne e o sangue. Ela, mais
forte, manteve a personalidade; eu mudei, sem arrependimento. Desenvolvi
instintos, resgatei paixão pela fragilidade, gozei a dor. Descobri a ternura da
mãe pelo feto. Feto, afeto... Assustado com o comportamento, reagi. Esganei-a
de novo. Em meio à investida, seus olhos negros moveram-se em desordem,
afogados na tez de leite. A delicadeza me enfeitiçou, sucumbi por completo.
Desde então,
amo-a sem recaídas de assassino. Juntos dia e noite, incomoda-me apenas nas
madrugadas: não tolera a separação do sono. Ante a solidão e meu silêncio,
cutuca-me, à procura de penetração carnal. Acordo em sobressalto, logo me rendo
a seus requebros. Calam fundo, porém matam-me de prazer.
Hoje de
manhã, experimentei a dor do parto. De fato, ela nasceu. Rompeu-me as entranhas
sem pressa. Primeiro surgiram os olhos, depois a cabeça e o tronco. As asas
apareceram recolhidas, molhadas. O abdome emergiu por último. Livre para o
mundo, esfregou as patas e bebeu de meu sangue. Jamais fui tão feliz.
A pequena
larva tinha evoluído dentro de mim até culminar na mosca que eu contemplava
sobre a pele, ora verde, ora azul, com lampejos dourados, variáveis conforme o
ângulo da luz. Sua carne era minha carne. Diferençávamos apenas na forma. Com
olhar de incesto, admirei-lhe a beleza. Com orgulho de pai, quis exibi-la.
Tomei, num
momento fugaz, o choque da realidade: eu a havia criado na coxa, suportado a
gestação, parido. Estava louco. Louco. A consciência da loucura destroçou-me.
Ergui a mão, preparei o infanticídio, não consegui executá-lo. O instinto
maternal prevaleceu. Eu a adorava mais que a qualquer outro ser. Sim, éramos
um.
Por amor, decidi incubar seus ovos. Que
ela me usasse como bem entendesse, eu aceitaria o padecimento. Que tivesse
centenas de filhos, eu cuidaria de todos. Com a entrega, desejava apenas gerar
vidas, alimentá-las, eternizar o milagre.
Tentei acariciá-la, agachou-se, ameaçou
voar. Sim, deveria sair de casa, dar uma volta pela vizinhança, encontrar um
companheiro para fecundá-la. Só assim me tornaria ninho outra vez.
Com cuidado, muito cuidado, encostei o
indicador em sua cabeça. Galgou-o até a falange. Levantei-me devagar, abri a
janela, lancei-a ao espaço. Em êxtase, acompanhei-lhe o voo nupcial. Pela
primeira vez em setenta anos, senti-me útil ao mundo. Nunca é tarde, diziam com
razão os antigos.
Desde a manhã, espero. Angustiado, eu a
espero.
quinta-feira, 13 de agosto de 2015
O REI DA PICARETAGEM
Sempre que vejo falsos religiosos
pregando nas tevês com a maior cara de pau, penso nos 300 e tantos picaretas do
Congresso Nacional que um conhecido político certa vez afirmou existirem no Senado e na Câmara. Uns e outros são farinha do mesmo saco. Uns e outros me
remetem a Tartufo, um dos mais famosos personagens de Molière, o maior
dramaturgo francês.
Tartufo é, também, o nome da peça que ele protagoniza, das
mais encenadas do teatro. Tartufo é fingido, hipócrita, mentiroso, corrupto, chantageador,
desleal, falso religioso, interessado apenas em tirar dinheiro daqueles a quem faz
as mais devotas pregações.
A peça estreou em 1664, portanto há 351 anos, e
continua atualíssima. Provocou violenta reação do clero da época, ficando
proibida por alguns anos. Quem a visse ou encenasse foi ameaçado de excomunhão
pelo arcebispo de Paris.
Leia Tartufo para ver
como a canalhice não muda através dos séculos. Depois, ligue a tevê, escute atentamente os canais
religiosos com apelo financeiro, analise as técnicas de persuasão utilizadas,
em seguida compare os debates no Congresso com a verdadeira atuação, nos
bastidores, de deputados e senadores. O resultado é puro teatro, o teatro de
Molière, a falsidade de Tartufo até a exaustão. Uma tartufada sem fim.
Acontece
que Tartufo, no final da peça, é desmascarado. No Brasil, isso ainda está longe
de acontecer. Nossos Tartufos continuam depositários da moralidade. A cada dia
que passa, Molière estremece no túmulo por nós.
quarta-feira, 12 de agosto de 2015
O PAI DO DOM QUIXOTE
Existe unanimidade quanto ao
maior romance da língua espanhola : é o Dom Quixote, de Cervantes. Muitos também
o consideram o marco inaugural do romance moderno. Deliciosamente picaresco e
grotesco, Dom Quixote de la Mancha parodiou e criticou as histórias de
cavalaria.
Mas haveria, na literatura espanhola, um antecessor dele, um germe
que viesse a brotar com maior viço na cabeça de Cervantes? A resposta é sim. Há
alguns.
Um deles é “A vida de Lazarilho de Tormes”, publicado em 1554, quando
Cervantes tinha apenas sete anos. Com espírito picaresco e grotesco, Lazarilho
de Tormes é quixotesco meio século antes de Dom Quixote. Ninguém sabe quem o escreveu,
mas, pelas críticas que o pequeno livro faz, era um erudito, bem informado
sobre as mazelas da época, sobretudo as da Igreja católica, principal vítima do
autor.
No entanto, é na sátira à cavalaria que os dois livros mais se aproximam.
Lazarilho serve a um escudeiro que tem o perfil de Dom Quixote, inclusive em
algumas imagens que lhe são agregadas, como a triste figura, a sorte adversa, a
defesa da honra, a falsa nobreza. O próprio Lazarilho, com seu apego à
realidade, é um rascunho de Sancho Pança.
Isso mostra que, por mais originais
que julguemos os autores, nenhum escapa às influências de seus antecessores. No
entanto, alguns, através de seus temperos exclusivos, linguagem elaborada, metáforas
incomuns e genialidade própria, levam a fama. Shakespeare que o diga. Desculpe
o lapso. Cervantes que o diga.
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terça-feira, 11 de agosto de 2015
SOBRE O QUE ESCRITORES FOFOCAM?
Sempre me perguntam, durante uma festa, sobre que assuntos
os escritores conversam em seus encontros. A pergunta, na verdade, é outra.
Querem saber se falamos apenas de livros. A resposta é não. Como qualquer
outro grupo, falamos de tudo, com especial predileção pelos amigos ausentes. Ai
dos ausentes. Sim, com frequência quem não está na roda entra na roda. A gente tem permissão. Como
escritores costumam ser bons observadores, conhecem bem os detalhes da vítima, põem depressa a
mão inteira na ferida.
Mas nem tudo é má-língua. Também fazemos elogios. O
problema é que alguns colegas não dão motivo. Dia desses, tivemos uma boa
razão para elogiar, e o fizemos. Um sisudo romancista, no auge da capacidade
criadora, resolveu surtar no meio de um bar e incorporou uma pomba-gira ou um
diabo, sei lá. A interpretação, de tão convincente, arrancou aplausos de toda a
roda, com seguidos pedidos de bis, prometido para breve. Esse autor/ator deve
estar gestando um personagem meio endemoninhado. Só pode ser isso. A outra opção é pior.
Mas a resposta também pode ser sim. Sim, falamos de literatura. Assim como gostamos de escrever,
também gostamos de ler. Muito. Discutimos, por horas, às vezes com veemência, nossas preferências. Na semana passada, recebi uma ótima dica de leitura. Um
ficcionista de primeira aplicou-me o norte-americano Cormac MacCarthy, autor
que explora a violência em seu limite. Escorre sangue de suas páginas.
Recomendou-me o romance Meridiano de Sangue, obra-prima de MacCarthy. Já estou conferindo.
Para amenizar nossos encontros, como os de qualquer outro grupo, contamos piadas. Afinal, quem resiste a uma boa piada?
Dizem que a vida é a maior delas. Verdade ou mentira? Bom assunto para puxar no
próximo encontro com escritores. O riso é sempre a coroação de
um bom papo.
segunda-feira, 10 de agosto de 2015
BEBER LITERATURA
Uma destas, a do Trinity College, oferecia mais de 200.000 volumes já no século 18, e a sala de leitura mede mais de 70 metros de comprimento. A gente se perde entre as prateleiras. O grande tesouro irlandês é também um livro, o chamado Book of Kell´s, um pergaminho dos Evangelhos com mais de 1000 anos, coberto de belas iluminuras. Uma obra de arte admirável.
Num ambiente desses, não é de se estranhar que a Irlanda tenha tantos grandes autores, a começar por James Joyce, ícone do século 20, conhecido sobretudo por seu romance Ulisses. Sem falar, é claro, em Dublinenses.
Mas também eram irlandeses Jonathan Swift, Oscar Wilde, Bernard Shaw, Samuel Beckett, o poeta Yeats e o também poeta Seamus Heaney, extraordinário, por sinal, ganhador do prêmio Nobel em 1995.
Por falar em Nobel, a pequena Irlanda, com menos de 7 milhões de habitantes, coleciona 4 em literatura. A tradição se traduz nos prêmios. De fato, não apenas em Dublin, mas em toda a Irlanda, se bebe literatura. E, junto, muita cerveja. Combinação perfeita.
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domingo, 9 de agosto de 2015
Entre a razão e a emoção, com qual você fica?
O
que nasceu antes, a razão ou a emoção? Se você respondeu a emoção, acertou. A
emoção precede a razão. Quanto mais desenvolvemos as emoções, melhor
raciocinamos. Muita gente sabe isso por instinto, mas faltava comprovar cientificamente.
A comprovação foi feita por neurocientistas nos Estados Unidos, na Europa e
aqui no Brasil.
Agora, faço uma provocação: o que é a literatura senão pílulas concentradas de emoção?
Dessa simples pergunta, conclui-se que quem lê bastante ficção raciocina
melhor. Isso de fato acontece. Outro estudo sobre o cérebro explicou o motivo.
Nossa mente não distingue bem a diferença entre a realidade e a fantasia
escrita nos livros. Para o cérebro, são quase a mesma coisa o enredo de um
romance e um episódio que estivéssemos de fato vivendo. Resultado: aprendemos
muito com a fantasia, o que nos ajuda a raciocinar melhor.
Como
se essas vantagens já não bastassem, a leitura ainda lubrifica as estradas de
neurônios que produzem os pensamentos, transformando-as em verdadeiras
autopistas de grande velocidade. Tanto é verdade que, num estudo recente, constatou-se
que os analfabetos e os pouco letrados não ganham o benefício da agilidade dos
impulsos neuroniais.
Uma
pena que isso aconteça. Como se vê, o analfabetismo é duplamente cruel com as
pessoas, social e mentalmente. Resumindo a questão: se você quer maior rapidez
de pensamento busque o entretenimento. O entretenimento da leitura. Ninguém sai
o mesmo de um bom livro.
sexta-feira, 7 de agosto de 2015
TRAVESSIA DOS ANDES: DESAFIO NA NEVE
Imagine uma cordilheira dentro de
outra, mãe e filhote. Imagine o filhote com dezenas de picos nevados a mais de
cinco ou seis mil metros de altitude, agrupados num perímetro de apenas 165
quilômetros. Isso existe? Sim, existe. Existe no meio dos Andes peruanos, está
separada do maciço central, tem características próprias e se chama Huayhuash. Atravessá-la
é um desafio radical. Num único dia, saí de uma densa mata de quenuales a três
mil e quinhentos metros de altitude, cheguei à neve a cinco mil e dormi a
quatro mil, na puna andina. Encontrei por lá gente de trinta países, nenhum
brasileiro. Ainda não descobrimos o lugar.
Huayhuash é uma aventura que marca não
apenas pela beleza, também pela diversidade de clima, de relevo, de plantas e
animais, pelos lagos cristalinos, pelo estrondo das avalanchas, pelo silêncio
da noite, pela pureza do ar, pelo vento que arrasta e congela. Nem pense em ir,
se você gosta de conforto. Barraca é o único hotel. Estrelas, o triplo das que
vemos em nossas cidades, são o cobertor.
Huaywash tem o som, em inglês, de “why
wash?” ou “por que se lavar?”. Ao percorrer suas trilhas, em média doze dias,
é difícil tomar banho. Os riachos que descem das geleiras não nos convidam para
mergulhos. De tão frios, trazem risco de hipotermia. Na única fonte termal que
encontrei, ao pé de um vulcão, tive a companhia de uma nevasca que me roubou a
coragem de sair do poço. Punha a cara fora da água, o cabelo congelava, e eu mergulhava
de volta no quentinho.
Belas montanhas com nomes sonoros e
estranhos compõem a paisagem, brancas de doer ao sol: Yerupajá, Jirishanca,
Ninashanca e Siula. O Siula, aliás, foi palco da façanha relatada no livro “Tocando
o vazio”, prova da enorme capacidade de resistência do ser humano.
Huaywash, de tão remota e selvagem,
foi esconderijo do Sendero Luminoso, o famoso grupo guerrilheiro peruano.
Sendero Luminoso, ou Caminho Luminoso, seria um nome apropriado para a
cordilheira. Ali se veem todas as possíveis nuanças de luz, sobretudo aquela
que, lá no alto dos cumes, onde o ar rarefeito embevece o cérebro, parece
brotar de dentro da gente e iluminar o presente, o passado e o futuro,
revelando a imensa curtição de estar neste mundo. À luz de Huayhuash, a vida
pulsa através de todos os tempos num único momento. Um eterno momento. Quem
resiste a lugar desses?
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quinta-feira, 6 de agosto de 2015
QUEM TEM MEDO DE UM ATEU?
Há alguns escritores que, pela competência,
permanecem bem vivos na literatura depois que morrem. Outros, ainda mais
importantes, ficam pela competência e pela coragem.
Tal foi o caso do inglês Bertrand Russell, prêmio Nobel de Literatura em 1950, autor que deixou uma vasta obra, sem falar em sua atividade pacifista e no fato de ele ter sido um dos grandes matemáticos do século 20.
Um dos livros mais conhecidos de Bertrand Russell é Por que não sou cristão, onde ele aponta os motivos pelos quais não acreditava nas promessas do cristianismo e, mais além, expõe por que defendia o ateísmo.
Russell, grande lógico que era, destrinça os argumentos usados para as defesas do cristianismo e de Deus e chega a conclusões arrasadoras, tão arrasadoras que muito se escreveu contra ele. Muito mesmo. Alguns de seus debates foram antológicos. Os adversários se calaram.
Imagino que, mesmo nos dias de hoje, um escritor brasileiro teria dificuldade de publicar aqui, em primeira mão, um livro tão contundente quanto Por que não sou cristão, em função de nossas tradições religiosas. Acontece que o livro se baseia numa palestra feita na Inglaterra em 1927, portanto há quase 90 anos. Provocou uma grande comoção ao sair, mas os ingleses bancaram a independência intelectual de Russell, assim como haviam feito com Darwin.
Talvez essa independência ajude a explicar por que tenhamos ficado no banco de trás, por tanto tempo, no bonde da história. Nos dias de hoje, em que o rancor religioso é pregado abertamente por determinadas seitas no Brasil, em que supostos "guerreiros de Jesus" conclamam para guerras santas, os alertas de Bertrand Russell soam absolutamente atuais. Vale a pena conhecê-los, independentemente da crença. Ateus não cobram dízimo quando tentam ajudar.
Tal foi o caso do inglês Bertrand Russell, prêmio Nobel de Literatura em 1950, autor que deixou uma vasta obra, sem falar em sua atividade pacifista e no fato de ele ter sido um dos grandes matemáticos do século 20.
Um dos livros mais conhecidos de Bertrand Russell é Por que não sou cristão, onde ele aponta os motivos pelos quais não acreditava nas promessas do cristianismo e, mais além, expõe por que defendia o ateísmo.
Russell, grande lógico que era, destrinça os argumentos usados para as defesas do cristianismo e de Deus e chega a conclusões arrasadoras, tão arrasadoras que muito se escreveu contra ele. Muito mesmo. Alguns de seus debates foram antológicos. Os adversários se calaram.
Imagino que, mesmo nos dias de hoje, um escritor brasileiro teria dificuldade de publicar aqui, em primeira mão, um livro tão contundente quanto Por que não sou cristão, em função de nossas tradições religiosas. Acontece que o livro se baseia numa palestra feita na Inglaterra em 1927, portanto há quase 90 anos. Provocou uma grande comoção ao sair, mas os ingleses bancaram a independência intelectual de Russell, assim como haviam feito com Darwin.
Talvez essa independência ajude a explicar por que tenhamos ficado no banco de trás, por tanto tempo, no bonde da história. Nos dias de hoje, em que o rancor religioso é pregado abertamente por determinadas seitas no Brasil, em que supostos "guerreiros de Jesus" conclamam para guerras santas, os alertas de Bertrand Russell soam absolutamente atuais. Vale a pena conhecê-los, independentemente da crença. Ateus não cobram dízimo quando tentam ajudar.
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Prêmio Nobel
quarta-feira, 5 de agosto de 2015
A MÃO INVISÍVEL
Um bom livro não precisa, necessariamente, ser
extenso. Nem precisa ser contemporâneo. Aqui
vai um exemplo de livro antigo que merece ser lido. Aliás, é um clássico que nenhum graduado em ciências
econômicas pode ter deixado de ler. Trata-se de A Riqueza das Nações, de Adam
Smith. Publicado em 1776, é tido como um grande suporte teórico do liberalismo
econômico ou do capitalismo.
Para quem defende o liberalismo e o capitalismo ou
para quem os odeia, Adam Smith e sua mão invisível do mercado, isto é, a mão
invisível do interesse e do egoísmo, são indispensáveis para compreender o funcionamento
da economia.
No entanto, há uma outra maneira de ler a obra: é descobrindo como
o autor escocês cria sua tese e a defende, investindo seu talento nos
argumentos e na persuasão. Assim se entende como essa mão invisível do
Iluminismo ainda seduz tanta gente em pleno século 21.
Pertence à Riqueza das
Nações a célebre frase, citada em quase todos os compêndios de economia: “Não é
da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que nós podemos desfrutar
nosso jantar, mas do empenho deles em defender seus próprios interesses”.
Adam
Smith, pai do capitalismo e do laissez-faire, defendia que a competição é o
motor de uma sociedade produtiva, uma lição que nós, brasileiros, tardamos a
aprender, iludidos por atalhos que não deram certo. Se nossos economistas
tivessem de fato lido A Riqueza das Nações, talvez não amargássemos hoje uma
terrível posição na competitividade entre as nações. Isso apesar do livro estar disponível há 240 anos. Pior ainda para nós: muita gente em outros países o leram e puseram em prática suas conclusões.
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terça-feira, 4 de agosto de 2015
A MÚMIA PARALÍTICA
Até hoje ignoro a grafia
correta do lugar: Sakara, Sakkhara, Saquara ou apenas Sacara? Fica à beira do
deserto da Líbia, no Egito, a uns cinco quilômetros do Nilo. Lembra dezenas de
casamatas arrasadas por bombas. O inimigo, na verdade, se chama tempo. Em quase
cinco mil anos, a ação das intempéries e do ser humano pôs abaixo essas
construções, as pirâmides mais antigas conhecidas. São tumbas em degraus, para
levar os primeiros faraós até a eternidade. Pelo menos, deveriam levar.
Dizem que os astecas e os
maias as copiaram com a ajuda de discos voadores, da Atlântida ou de força
antigravitacional. Prefiro manter o tiquinho de lucidez que me resta e ficar de
fora da polêmica. A precaução preserva a sanidade. Graças a esse expediente,
safei-me de dois fantasmas em Sacara.
Quem quiser conhecer as ruínas
de Sakara deve pagar o ingresso, que dá direito à visita e ao guia que conta a
história de cada monumento e de seu faraônico ocupante. Melhor dizendo,
ex-ocupante, pois os ladrões não pouparam nem os cadáveres. Por séculos, na
falta de Viagra, o pó de múmia fez o milagre. Coitados dos faraós. Em vez de
subir aos céus, subiram outras coisas.
À entrada de uma
pirâmide, o guia, alegando cansaço, pediu-me para continuar sozinho pelo túnel
que sumia terra abaixo. Grandes surpresas me aguardavam, avisou. As pinturas
nas paredes me distraíram, fiquei entusiasmado, dobrei os corredores à esquerda
e à direita, a claridade diminuiu, apagou. De repente, surgiram dois homens
mal-encarados com lanternas iluminando o rosto. Gente ou fantasma?
Alegaram ser
guarda-pirâmides e exigiram vinte dólares para me autorizar a permanência.
Mostrei-lhes o ingresso, com direito a visitar toda Sacara. Em resposta, Cosme
e Damião abriram a camisa e expuseram dois punhais na cintura. Dourados,
curvos, com cabo de madrepérola. Fiquei paralisado, mumificado. Múmia
paralítica.
Passado o impacto, achei
os dois argumentos de aço muito convincentes. Baratos até. Enfiei a mão no bolso, tirei uma
nota, entreguei-a para os guardas. O sorriso de um emendou-se ao do outro,
fizeram salamaleques, conduziram-me pela tumba, explicaram os afrescos,
decifraram os hieróglifos, duas damas de tão gentis. Nada entendi, tampouco
queria. Minha curiosidade que se danasse. Pensava apenas em sair da clausura o
mais rápido possível.
Meia hora mais tarde,
enxerguei a luz do dia. Um alívio. Cosme e Damião agradeceram minha
generosidade, renovaram as mesuras e evaporaram em direção à escuridão do
túmulo.
Ao narrar o acontecido
para o guia, ele desconfiou do relato. Ninguém, exceto eu, entrara lá dentro.
Será que eu tinha cara, além de paralítica, de múmia idiota? Pois é. Em Sakkhara,
os fantasmas gostam mesmo é de dinheiro vivo. Ou dinheiro dos vivos, tanto faz.
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domingo, 2 de agosto de 2015
À SABEDORIA DAS BARATAS, COM MUITO RESPEITO
Na década de 1960, no meio do deserto de Gobi, foram
encontrados os fósseis de dois dinossauros em plena luta, um com os dentes
cravados no pescoço do outro. Estavam tão ligados no combate que se esqueceram do
perigo maior que os rondava: a enorme tempestade de areia que os soterrou. Na
época, uns oitenta milhões de anos atrás, os mamíferos, pouco maiores que
ratazanas, ensaiavam os primeiros passos na escalada evolutiva. Prever, então,
a existência do ser humano seria um exercício de futurologia tão ingrato quanto
adivinhar hoje que espécie dominará a Terra daqui a outros oitenta milhões de
anos, se é que haverá uma. No entanto, qual dos animais existentes teria as
melhores chances de sobreviver?
A humanidade se atribui uma importância excessiva. Nossa
vaidade oscila entre o ufanismo por um mundo criado da noite para o dia para
nosso deleite à vergonha de contaminarmos e destruirmos o frágil ecossistema.
Os extremos demonstram que continuamos a medida de nós mesmos e, de quebra, do
resto. Encaremos a realidade: não somos o centro de tudo, tampouco o ponto ômega
da evolução. Somos uma espécie ainda amaciando o motor,
se comparada à quilometragem das baratas, matusaléns anteriores aos
dinossauros. Não temos um futuro certo e sabido, apesar do afinco que dedicamos
ao amanhã.
Gozamos, hoje, de vasto domínio sobre o planeta,
longe de ser absoluto como sugere muita gente. Nossas interferências
apequenam-se ante a força da natureza. Numa única erupção, o vulcão Pinatubo
poluiu a atmosfera mais que todos os automóveis e fábricas juntos. Um terremoto
de magnitude nove na escala Richter pode devastar mais que a soma dos arsenais
nucleares. Um acréscimo de apenas cinco por cento na produção de energia pelo
Sol bastará para nos torrar. Nossas bombas não seriam tão eficientes.
Atuamos no varejo, tanto para construir quanto destruir.
As espécies vêm e vão ao sabor de eventos que só podemos imaginar. Estamos
todos a bordo da Terra, abelhas, jabuticabeiras, enguias e seres humanos. Se
uma espécie não é, intrinsecamente, melhor que a outra, isso não significa que
devamos abrir mão de nosso apego à sobrevivência. Se apenas uma puder
subsistir, que seja a nossa.
Para incrementar nossas chances de êxito, sugiro um
respeitoso exame das baratas. Como disse, elas estavam por aí quando aqueles
dois dinossauros se engalfinharam no deserto de Gobi. Qual o segredo das
baratas? Covardes, fogem sem qualquer constrangimento ante um chinelo, não
são muito chegadas a elucubrações (exceto aquela do Kafka, bastante influenciada
pelo convívio humano), comem o que aparece, adaptam-se ao frio e ao calor e, a
julgar por seu número e tamanho em alguns bares e restaurantes brasileiros, não
correm perigo de extinção. Em suma, seu segredo é viver e deixar viver, receita
simples e eficiente, fácil de aprender. Sabem que a natureza, com suas
experiências evolutivas, é o grande laboratório. Estão sempre de olho no que
vem por aí. E chegam junto.
Eu apostaria nas baratas como a espécie com maiores
possibilidades de herdar a Terra no futuro distante. Afinal, possuem vasta
experiência com o planeta, não se encheram de ufanismos, respeitam as leis
básicas da vida. Convém seguirmos seu exemplo. A sobrevivência é o grande
prêmio que uma espécie pode ganhar. Às vezes, com toda a nossa sabedoria,
acho que ainda não aprendemos isso. Às vezes, com toda a nossa estupidez, acho que nunca aprenderemos.
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sexta-feira, 31 de julho de 2015
A Lua, minha sombra e eu: três solidões
Como
se fala da China... Queda da bolsa de Xangai, redução das importações, economia em crise, falta de democracia, capitalismo selvagem... Pouco se fala de sua
poesia. Ela teve um chamado "período de ouro" durante a dinastia T’Ang, que governou o país entre os anos 618 e 907, desenvolveu a impressão de livros com
blocos de madeira e expandiu a Rota da Seda rumo ao Ocidente.
A China venera
até hoje esses poetas que viveram há 1300 anos. Eles são muitos, mas
dois se destacam: Li Po e Tu Fu, grandes amigos, bravos guerreiros que
arriscaram a vida em muitas batalhas, beberrões incorrigíveis e, apesar dos
estilos diferentes, mestres de uma poesia visual, à flor da pele.
Li Po e Tu Fu escreveram
verdadeiras pinturas, cheias de cor e detalhe, capazes de penetrar fundo na natureza
e na alma. Uma pena que suas obras percam a sonoridade interna com a tradução.
Tu Fu esmerou-se na descrição dos efeitos da guerra. Ele diz:
Um cavalo branco aparece do nada,
Esbaforido de medo,
A sela vazia atravessada por 3
flechas.
Onde está o cavaleiro,
Para que a vã coragem
Que lhe ofereceu o calor da guerra
E o levou ao frio da morte?
Li
Po gostava do vinho e da Lua. Uniu esses prazeres numa bela composição:
Entre as flores do jardim,
Copo à mão,
Bebo sozinho.
Os amigos partiram,
Não sei onde estão.
Ergo um brinde à Lua cheia.
A Lua, minha sombra e eu,
Três solidões.
Cecília Meireles legou-nos algumas traduções de Li Po e Tu Fu, três vezes inspiradas pois
junta sua criatividade à dos dois poetas chineses. Não são três solidões. São três encantos.
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quinta-feira, 30 de julho de 2015
A ETERNIDADE, O POETA E O QUASAR
A mente humana há muito se ocupa com a eternidade:
se existe, o que significa, qual o caminho até ela. As eternidades são muitas,
algumas bastante breves. Para diversos insetos, como as efeméridas que se
tornam adultas no quarto minguante, a Lua cheia talvez seja o exemplo acabado
do tempo infinito, pois morrerão antes do crescente. E para nós, o que é a
eternidade? Uma espera aborrecida de uma hora no ponto de ônibus no meio da
chuva, os dias que não passam entre um e outro encontro de amantes, um século,
um milhão de anos?
O título desta crônica não esconde uma mensagem cifrada.
Li Po (701-762) é um grande poeta chinês da dinastia T’ang que conseguiu,
através da justaposição inspirada de ideogramas, a ambiguidade de vários poemas sobrepostos em cada um deles, todos merecedores de permanência na memória comum da
humanidade. Hoje, doze séculos após sua morte, ainda podemos captar seu estado
de espírito em meio à natureza que tanto amou, na vizinhança da montanha
Tai-t’ien:
“À margem do riacho, não escuto os sinos do
meio-dia.
Bambus selvagens retalham o firmamento.
Cascatas dependuram-se no abismo verde.
Ninguém sabe por onde você anda.
Triste, busco apoio no tronco de um pinheiro”.
Seria Li Po eterno?
OQ 172 designa um dos mais distantes objetos
celestes já detectados, um quasar nos confins do Universo, pertinho do Big Bang
onde tudo nasceu. Sua luz partiu quando não existiam seres humanos, tampouco a
Terra ou o Sol. A longa viagem avermelhou os fótons, enfraqueceu-os, tornou-os
quase imperceptíveis. Eles testemunham, entretanto, uma experiência que ainda
não compreendemos direito, a do espaço e do tempo condensados numa partícula
ínfima que, à semelhança de um poema de Li Po, fomenta múltiplas
interpretações. O quasar talvez não mais exista há bilhões de anos, porém só
agora tomamos conhecimento de sua longínqua presença. É como descobrir ainda
bebê um velho que já morreu.
OQ 172 seria um símbolo do eterno?
A eternidade não mora apenas na poesia ou na física,
mas em tudo que nos encanta. A aventura humana, apesar de curta em termos
cosmológicos, está cheia de exemplos. E a vida se torna mais prazerosa à medida
que penetramos nos meandros dessa aventura. Cada pessoa que nos precedeu legou
sua eternidade, e nossas próprias experiências construirão outras. Por que não
viver com gosto, o nosso e o alheio?
Em outro poema, Li Po acompanha um amigo que se
afasta num barco:
“A sombra de sua vela solitária desvanece no vazio
Agora resta apenas o Grande Rio a caminho do céu”.
Este Grande Rio talvez não consigamos entender durante a vida, porém Li Po e OQ 172 são trechos dignos de percorrer, nos quais a arte e a ciência – filhas gêmeas do gênio humano – nos ciceroneiam através de mundos novos e, ao mesmo tempo, antigos. Melhor dizendo, mundos eternos.
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quarta-feira, 29 de julho de 2015
O ESCRITOR E SEUS MEDOS
Sempre amarelo diante da página em branco. Ao encerrar o
dia sem uma linha aproveitável, avermelho. De raiva. Temo o esgotamento da
fonte, a incompetência, a chuva no molhado. Dar vida ao vazio do papel, ou
melhor, enchê-lo com um texto no mínimo razoável é o pesadelo do qual nunca me
livro. Persegue-me até depois que durmo. Sonhei com um robô que, ao ser
ligado, começava a escrever histórias e só parava quando estavam prontas, sem o
desgaste da procura de palavras, personagens, situações, enredos.
Robotizar a escrita seria uma solução para meu medo? Nunca. O invento acabaria
com o melhor da festa, o instante em que a cabeça e a ideia entram em fase, se
fundem, e o mundo se ordena. Ele me roubaria o momento da síntese, da captura,
do insight, o átimo de discernimento
que faz toda a diferença. Quem cria sabe como a sensação é prazerosa. Pode vir
de um poema, uma crônica, uma solução arquitetônica, um diagnóstico médico. O processo
culmina – ou apenas se inicia? – no mesmo eureka
neuronial.
De posse do esboço, como fixá-lo na tela do computador? Como transformar
lampejos em palavras, como transpor a rapidez da química mental para a lentidão
da escrita? Como agarrar a inspiração antes que escape? Como traduzir a
amplitude da emoção para a rigidez do símbolo? Como conduzir o estouro da
boiada para o curral do texto? Bem, nessa hora, não há berrante que ajude. Nem
berro. Não conheço outro caminho senão o da experiência e do erro. Cerca-se daqui
e dali, rodeia-se, fecha-se a porteira com muita rês do lado de fora. Invejo
quem consegue, na primeira investida, capturar o rebanho. Em desespero, concluo, às vezes, que jamais fui vaqueiro.
Livro pronto, enfrenta-se o editor, uma pessoa à procura
de obras-primas, ou melhor, bom entretenimento, ou melhor ainda, best seller. Coisa fácil, sem reflexão. Tece elogios para Michael Crichton, lamenta que o escritor
brasileiro não procure apenas divertir, acha-o muito literário. O leitor,
contudo, não é bobo. Sabe que a literatura significa muito mais que soltar
tiranossauro num parque.
Depois de publicado, o livro vai para uma feira, ao
lado de centenas de milhares de outros. A pergunta sempre me ocorre: há algo
que ainda não tenha sido escrito? Por que me dedicar à ficção num mundo
aferrado a realidades muitas vezes mais desvairadas que o romance mais
imaginoso?
Acredito que existem respostas. Cada autor traz uma
experiência exclusiva, sintetiza as visões anteriores do ser humano e
acrescenta o tempero da época em que vive. Deixa uma receita modificada, cujos
ingredientes recém-adicionados costumam ressaltar sabores já esquecidos. Além
disso, este século nunca aconteceu antes, portanto a obra é um testemunho de
nosso tempo para o futuro. Se vai ficar, não importa. Há que se escrever.
Já disseram que ser escritor é pior que praga de mãe. Não
concordo. É uma atividade como qualquer outra e proporciona prazeres
adicionais. Por exemplo, minha alegria neste momento, quando encerro a crônica.
O ponto final sempre significa uma vitória, de Pirro às vezes. Perco o amarelo
paúra, começo a recuperar a cor. Superei, de novo, a síndrome do papel em
branco.
Passo agora a pensar em sua confortável situação,
caro leitor. Você aprova ou rejeita o texto, para no meio, põe de lado, sem
levar em conta a energia despendida ou meu medo. Posso afirmar: escrever exige
mais esforço que ler. Mas há quem goste do ofício. Sou um desses.
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terça-feira, 28 de julho de 2015
RELIGIÃO PARA TODOS OS CREDOS
Para descobrir a religiosidade existente atrás do
corriqueiro, a receita é simples: basta um jantar em casa. Sozinho. Para
começar, feche as janelas, diminua a luminosidade, vista uma roupa confortável.
Prepare sua comida, um macarrão por exemplo. Escolha o vinho de sua
preferência. Acenda velas e incenso suave. Ponha para tocar um disco de música
antiga, como do compositor quinhentista Josquin des Prés (ou Desprez). Pronto,
está montado o aparato para a travessia, ou melhor, a religação com você mesmo
e a nossa espécie.
Saboreie sem pressa a massa, o vinho, perceba sua cor rubra ou dourada contra a chama, a música, os odores, a penumbra, o
contato da boca com a comida e a bebida, descubra o peso do talher, fique
atento à mastigação. Pense nas centenas de pessoas que contribuíram para seu
prazer. Quantos plantaram e colheram o trigo, construíram sua casa, desenharam,
fabricaram e transportaram a baixela, montaram o aparelho de som, fizeram as velas, podaram as
videiras, quantas horas Josquin investiu até encontrar a combinação correta das
notas musicais. As pessoas se uniram através dos tempos para possibilitar seu
mergulho na plenitude, isto é, em você mesmo. Gente famosa e anônima, viva e
morta, através de seus ofícios, rendeu-lhe uma homenagem, sem conhecê-lo, sem
saber que você viria a existir.
Conscientize-se do elo entre os
séculos, abrace o coração da festa, desvele a origem desses requintes, o gênio
humano.
Integre-se agora, sem receio, ao caudal
do melhor lado de nossa natureza. Descubra que continuamos a medida e o sentido
de todas as coisas. Eis a religiosidade por excelência. Põe em contato as
gerações passadas, presentes e futuras, numa cadeia de fraternidade e de
partilha que exalta nossa grandeza e nossa fragilidade. Liga-nos às demais espécies e ao mundo. Aumenta nossa responsabilidade. Perceba o paradoxo: se
o experimento der certo, talvez você se sinta maior ao se transformar em
simples ponte entre épocas, átimo de consciência na enormidade do tempo.
O que é isso? Transcendência, delírio,
epilepsia do lobo temporal? Quem sabe? Pelo sim, pelo não, vale a pena tentar
religar-se à própria espécie, um gesto importante, mas pouco praticado. Entre a
vastidão e o nada, paira a vida. Entre as possibilidades e as incertezas,
colhemos os dias. Bom apetite.
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segunda-feira, 27 de julho de 2015
A VIAGEM DE GOETHE PELA ITÁLIA
Sempre
que um documentário ou telenovela focaliza a Itália e tanta gente sente vontade de
viajar à terra de Dante, lembro-me de outro grande poeta, o alemão Goethe, que,
logo após completar trinta e sete anos, percorreu o país, de Bolzano à Sicília.
Goethe legou-nos um suculento relato do que viu, ouviu, refletiu e aprendeu.
Mais que um ótimo livro de viagem, trata-se de um louvor à cultura e à
inteligência. Muita cultura e muita inteligência.
Enquanto atravessa a península, o
futuro autor de Fausto fala da arte,
das festas, dos costumes, da paisagem, da história, de muita coisa que já se
perdeu, faz especulação científica, antecipa a evolução darwinista com ensaios
sobre uma planta primordial, a Urpflanze,
mãe de todas as outras, discute o trabalho de pintores, escultores, arquitetos,
poetas e analisa a própria escrita feita ao longo do périplo até a ponta da
bota.
O livro Viagem à Itália 1786 a 1788 resume a Itália e a cabeça de Goethe,
gênio que por tudo se interessava. Com mente aberta, ele confessa que perdia a
fala ou chorava quando se emocionava, como ocorreu em Nápoles. Ali, depois de
repreender um rapaz que cantava muito desafinado, levou um puxão de orelha do
jovem, que, com o polegar em riste, lhe disse: “Perdão, senhor, mas esta é a
minha pátria”. Em outra ocasião, diante do viço de plantações bem adubadas,
comentou com ironia: “Esterco faz mais milagre que santo”.
Não suspendeu o roteiro nem depois de
quase ser preso, no lago de Garda, acusado de espionagem para a Alemanha. Hoje
em dia, as cidades à beira do lago mostram com orgulho os locais onde comeu,
dormiu, pintou, além de inventar histórias sobre sua breve passagem. Construíram até museus.
Talvez a viagem tenha inspirado sua
obra maior, Fausto, pois ele admite
que, em Nápoles, o terrível e o belo se anulam para produzir indiferença, e o
napolitano seria outro homem, caso não se sentisse encurralado entre deus e
satanás.
O país que
Goethe viu há mais de duzentos e vinte anos ficará, graças ao relato Viagem à Itália. No futuro, o livro
continuará servindo de guia e introdução a quem deseje conhecer a terra de
Dante, aliás, uma ótima pedida. Duplamente. Goethe também é sempre uma ótima
pedida. Nunca envelhece.
sábado, 25 de julho de 2015
O FILHO QUE NÃO TRANSAVA
Ele se orgulhava do filho, musculoso, bonito, alto, bem dotado, o tipo que, em sua longínqua adolescência, gostaria de ter sido. O garotão o redimiria do passado, realizando a fantasia nunca concretizada: tornar-se o maior benemérito da humanidade, espalhando seus genes pelos cinco continentes. Ou eram seis? Geografia nunca fora seu forte. Tampouco os predicados de garanhão.
Nem tudo é perfeito. O rapaz, aos dezoito anos, não tinha namorada, sequer ficava. Quer dizer, ficava, sim. Em casa. Chegava da aula e se enfurnava no quarto, grudado naquela droga de internet. Internet em vez de paquera no auge da juventude, quando a testosterona está saindo pelos poros, alguém entende? Só parava para comer, malhar nos aparelhos caríssimos que, ninguém entendia como, comprara com a pequena mesada e, terrível pesadelo, pegar no vídeo, todas as tardes, filmes de Rambo, UFC, músculos e afins, gosto no mínimo duvidoso para um homem de fato, para não levantar dúvida pior. Onde errara, Deus do céu?
Resolveu ir à luta. Comprou várias revistas masculinas, chamou o moço no canto, entregou-as com um comentário seco: “De homem pra homem, filho. A gente conhece nossas necessidades”. O rapagão deu uma gargalhada e tachou-o de idiota. Por São Judas, o pesadelo era mais sério do que parecia!
Conversou com a esposa, ela perdeu o sono, às quatro da manhã arrumou a solução: “Amor, por que você não leva ele pra fazer a coisa... bem, você entende, né? Antigamente todo pai levava”. Aceitou, em nome da honra da família.
Com a desculpa de ir ao supermercado, carregou o mancebo pela avenida onde senhoritas quase nuas comiam graças ao corpo, deixando-se canibalizar, em termos. O danado descartou-as, uma a uma: gorda, magra, traveco, feia, oxigenada, despencada, velha. Deus do céu, que pesadelo!
Com o incentivo da mulher, o pai radicalizou. Nos anúncios de relax, escolheu uma “universitária, dezoito aninhos, nova no ramo, liberada para realizar seus sonhos”. Ligou, conferiu se não havia propaganda enganosa, viu as fotos na internet. Era ela! Melhor, ai, muito melhor que a própria esposa na lua de mel. Pagou adiantado, o dobro, para compensar o exagero de recomendações. Arrastou o filho ao apartamento da profissional, obrigou-o a ficar, disse que o aguardaria no carro, que não se apressasse. Afinal, a primeira vez a gente nunca esquece.
Duas horas mais tarde, o garanhão apareceu, radiante: a donzela também adorava o youtube, viajaram por muitos sítios interessantes, até a convidara para passar depois lá em casa. Quanto à coisa, nada. Nadinha. “Pô, pai, relaxa, tô noutra”.
O pobre genitor entrou em desespero, subiu ao apartamento da contratada, pediu o dinheiro de volta, ouviu um não, porém, bem sensual, ela o abraçou: “Posso devolver agora, coroa gostoso, mas só se for em serviço”. Todos sabem como anda difícil arranjar qualquer trocado hoje em dia, com essa crise toda. Ele não podia perder a pequena fortuna assim de graça. Bem, já que estava pago... Demorou cinco minutos, incluindo tirar e pôr a roupa.
No dia seguinte, caíram duas bombas na casa: a universitária apareceu para navegar na droga do computador e escancarou o sorrisinho cínico de quem podia contar tudo. Minutos depois, a mulher do dono da videolocadora, invadindo a sala aos berros, confessou que o rapaz ia ser pai mais uma vez, mas agora o maridão descobrira tudo – e vinha pela rua com um revólver na mão.
Nem tudo é perfeito. O rapaz, aos dezoito anos, não tinha namorada, sequer ficava. Quer dizer, ficava, sim. Em casa. Chegava da aula e se enfurnava no quarto, grudado naquela droga de internet. Internet em vez de paquera no auge da juventude, quando a testosterona está saindo pelos poros, alguém entende? Só parava para comer, malhar nos aparelhos caríssimos que, ninguém entendia como, comprara com a pequena mesada e, terrível pesadelo, pegar no vídeo, todas as tardes, filmes de Rambo, UFC, músculos e afins, gosto no mínimo duvidoso para um homem de fato, para não levantar dúvida pior. Onde errara, Deus do céu?
Resolveu ir à luta. Comprou várias revistas masculinas, chamou o moço no canto, entregou-as com um comentário seco: “De homem pra homem, filho. A gente conhece nossas necessidades”. O rapagão deu uma gargalhada e tachou-o de idiota. Por São Judas, o pesadelo era mais sério do que parecia!
Conversou com a esposa, ela perdeu o sono, às quatro da manhã arrumou a solução: “Amor, por que você não leva ele pra fazer a coisa... bem, você entende, né? Antigamente todo pai levava”. Aceitou, em nome da honra da família.
Com a desculpa de ir ao supermercado, carregou o mancebo pela avenida onde senhoritas quase nuas comiam graças ao corpo, deixando-se canibalizar, em termos. O danado descartou-as, uma a uma: gorda, magra, traveco, feia, oxigenada, despencada, velha. Deus do céu, que pesadelo!
Com o incentivo da mulher, o pai radicalizou. Nos anúncios de relax, escolheu uma “universitária, dezoito aninhos, nova no ramo, liberada para realizar seus sonhos”. Ligou, conferiu se não havia propaganda enganosa, viu as fotos na internet. Era ela! Melhor, ai, muito melhor que a própria esposa na lua de mel. Pagou adiantado, o dobro, para compensar o exagero de recomendações. Arrastou o filho ao apartamento da profissional, obrigou-o a ficar, disse que o aguardaria no carro, que não se apressasse. Afinal, a primeira vez a gente nunca esquece.
Duas horas mais tarde, o garanhão apareceu, radiante: a donzela também adorava o youtube, viajaram por muitos sítios interessantes, até a convidara para passar depois lá em casa. Quanto à coisa, nada. Nadinha. “Pô, pai, relaxa, tô noutra”.
O pobre genitor entrou em desespero, subiu ao apartamento da contratada, pediu o dinheiro de volta, ouviu um não, porém, bem sensual, ela o abraçou: “Posso devolver agora, coroa gostoso, mas só se for em serviço”. Todos sabem como anda difícil arranjar qualquer trocado hoje em dia, com essa crise toda. Ele não podia perder a pequena fortuna assim de graça. Bem, já que estava pago... Demorou cinco minutos, incluindo tirar e pôr a roupa.
No dia seguinte, caíram duas bombas na casa: a universitária apareceu para navegar na droga do computador e escancarou o sorrisinho cínico de quem podia contar tudo. Minutos depois, a mulher do dono da videolocadora, invadindo a sala aos berros, confessou que o rapaz ia ser pai mais uma vez, mas agora o maridão descobrira tudo – e vinha pela rua com um revólver na mão.
sexta-feira, 24 de julho de 2015
A VERDADE DAS MENTIRAS
Ser
leitor é muito mais saboroso que ser escritor. Os livros alheios são mais de 40 milhões,
cada um nascido numa cabeça diferente, cada qual com sua própria contribuição à
cartografia do mundo e do ser humano. Em cada obra, existe um universo novo,
exclusivo. Já a gente, enquanto escritor, bem, a gente se conhece, sabe como
nossa cabeça funciona, sabe que tipo de livro produzirá. Eu, por exemplo, quando leio a primeira linha de um romance meu publicado, sei exatamente como terminará. Sou muito previsível... Daí minha preferência
pela leitura. Gosto da surpresa e do deleite que outros me proporcionam e chegam prontos à minha mão.
Gosto da variedade temática, do olhar diverso, do conflito de opinião.
Essa paixão pelo trabalho alheio
também domina o peruano Mario Vargas Llosa. Ele adora ler. Lê muito e de tudo,
sobretudo os grandes romancistas. A prova disso está em seus ensaios a respeito
de publicações que o influenciaram como Madame
Bovary, de Flaubert. Ele admite abertamente a influência. Sem medo.
Sua maior declaração de amor à
literatura se encontra, porém, em seu livro A
Verdade das Mentiras, no qual examina trinta e seis de suas obras
favoritas. A paixão funde-se à erudição, perspicácia e admiração com que se
debruça sobre autores como Hemingway, Faulkner, Canetti, Orwell, Moravia,
Malraux, Tabucchi, Lampedusa, Solzhenitsyn, Fitzgerald, Conrad e Joyce, todos
comentados, comparados e criticados, demonstrando que a literatura continua
bela, viva e criativa. É a arte das artes.
A Verdade das
Mentiras serve, ainda, de excelente guia para o leitor se aproximar dos
grandes mestres e escolher aqueles que lhe pareçam mais atraentes e, quem sabe,
também se apaixonar por eles.
Nessa comunhão de paixões, ao
imergir no universo da boa ficção, na fantasia que nos faz refletir sobre nós
mesmos e nossa condição humana, você compreenderá por que ser leitor é melhor
que ser escritor. Em nossa fragilidade e finitude, quando lemos, por momentos
exponenciamos nossa consciência e nos tornamos eternos. Carpe diem. A finitude é curta.
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quinta-feira, 23 de julho de 2015
A mulher que confundiu um papagaio com o Espírito Santo
Gustave Flaubert, o grande escritor
francês, morreu aos cinquenta e nove anos, em 1880. Sempre que o releio,
impressiona-me a atualidade de sua escrita, embora treze décadas e meia tenham
decorrido desde sua morte. Sem falar na qualidade do texto. Pouco envelheceu.
Além do genial romance Madame Bovary, entre outras obras,
Flaubert nos deixou uma pequena novela, na qual transborda seu talento e
criatividade. Em apenas setenta páginas, constrói uma obra-prima chamada Um Coração Singelo. Narra a vida de
Felicidade, empregada na casa da senhora Aubain durante meio século.
Felicidade é simplória, pau para
toda obra, da cozinha ao jardim à babá. Mora num pequeno cômodo, mal iluminado, com aspecto oscilante entre uma capela e um bazar. Toma para si as dores da
família com a qual trabalha, põe em segundo plano as dores da própria família,
exceto talvez a perda do sobrinho Vítor, que a explorava a pedido da irmã e do
cunhado. Como grande tesouro no fim da vida, Felicidade ganha o papagaio Lulu que,
depois de morto, é empalhado e enfeita seu quarto, onde adquire ares de
Espírito Santo na mente religiosa e senil da empregada.
A recriação de uma vida tão singela,
com detalhes realistas de personagens e ambientes, pontuados por fina ironia
que beira o sarcasmo, transforma Um
Coração Singelo numa das mais belas novelas do século 19.
Em pleno século 21, Felicidade ainda
existe. Ela é tristonha, sem brilho. Se olhar a seu redor, você a identificará
em diversas pessoas que vivem e morrem para lhe garantir um bom dia. E, em busca de um mínimo sinal de esperança na vida, ainda enxergam o Espírito Santo em qualquer papagaio que lhe apresentem como tal.
quarta-feira, 22 de julho de 2015
A MENTE QUE TUDO PODE
O médico me garante que a maioria de nossos males
tem origem psicossomática. Talvez a totalidade, ele acrescenta. Do alto de sua
longa experiência, garante que pessoas felizes não ficam de cama. Para
comprovar a tese, relaciona tipos de personalidade com as doenças: os muito
exigentes ficam hipertensos, os nervosos contraem dermatoses, os obsessivos
desenvolvem câncer, os estressados sofrem acidentes cardiovasculares. A mente
tudo pode. Mente?
O médico não está sozinho. Muita gente acredita que
a mecânica newtoniana – a ação e a reação – se aplica à saúde humana com a
mesma precisão que às maçãs em queda livre. Li um artigo sobre os males que
acometeram pessoas famosas a partir da análise de suas cabeças, do tipo fulano
morreu assim porque era assado (assados morreram muitos, porque ousaram
pensar). Até parece que nossos miolos são imutáveis e possuem uma
característica única, sem direito à tristeza, estresse, euforia, obsessão ou felicidade
de vez em quando.
As listas de causa e efeito fazem as previsões de
doenças a posteriori. Nunca antes dos sintomas. Que mal contrairá o
desempregado que teme voltar para casa à noite e comunicar à família que nem
biscate conseguiu? Como será hospitalizado o executivo que adora desafio e
viciou em estresse? Posto de outra forma, por que uma senhora sem problemas
familiares e financeiros, simpática, segura da vida eterna, contraiu um câncer
que a matou com dores terríveis? Por que alguns bebês vêm ao mundo com
leucemia? Por que indivíduos assumidamente infelizes chegam aos noventa anos infelizmente (para eles) bem de saúde? A satisfação, o amor e o sucesso vacinam contra
o vibrião do cólera? Orgasmos múltiplos evitam a AIDS?
Enquanto o psicotudo se alastra, outros médicos
destrinçam o genoma e descobrem relações cada vez mais convincentes entre a
herança genética e o futuro da pessoa. Ou desvendam as reações químicas que os
parasitas usam para penetrar nas células. Ou fazem cirurgias nos fetos.
A mente humana é poderosa, porém não pode tudo. Como
disse Montaigne há séculos, ela cria milhares de deuses, mas não faz um rato. Com todo o
arsenal de hoje, consegue mudar os roedores a partir do código genético
existente. Criar mesmo, do nada, neca. Nem inteligência artificial. O mundo é
bem maior do que a nossa imaginação.
Olho para o doutor com desconfiança, ele insiste que
as gripes surgem através da queda imunológica devida ao estresse dos dias atuais.
Pergunto-lhe por que os vírus não padecem do mesmo mal – ou por que derrotam as
mentes psicologicamente equilibradas, bem tranquilas.
E mudo de médico.
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terça-feira, 14 de julho de 2015
AS CARTAS NÃO SÃO JURÁSSICAS
Para Caio Riter
Admiro as cartas longas, sem rumo,
esparramadas, igual conversa de botequim. Admiro a capacidade de transformar o
assunto mais corriqueiro em arte e fazer a vida saltar para dentro das
palavras. Crônicas para uma só pessoa.
Sou uma lástima com as cartas. Por mais que me esforce, não sei escrevê-las. Além da falta de talento, fico telegráfico nas observações, consequência talvez dos emails, um vício. Minhas frases rangem como um edifício prestes a desmoronar, depois de empilhadas fora de ordem e de prumo. As idéias com frequência se superpõem, patinam, derrapam, sem saber para onde seguir. Repito-me na falta de assunto.
Considero as verdadeiras cartas entidades misteriosas. Vestem as mais diversas roupagens. Ora parecem monólogos endereçados aos outros ou diálogos de loucos consigo mesmos, ora almas que se autopsicografam, ora corações transplantados para os miolos ou confissões de seres que nos habitam quando a vigília cochila. Veículos de prazer, dor, amizade e intercâmbio, abordam desde a declaração de amor até o lamento do suicida. Possuem o perfume genuíno de nossa humanidade.
Hoje nos dedicamos pouco às cartas, porque talvez demandem paciência e reflexão, dois bens escassos. Falta, também, quem nos escute com atenção. Vivemos sob o signo da pressa, à qual o telefone e o computador atendem tão bem. Afastamo-nos de nós mesmos e dos outros quando nos imaginamos mais próximos. Próximos dos corpos, distantes do coração. Revolver profundezas saiu de moda.
Por esse motivo, um amigo que cultiva as cartas se julga jurássico. Escreve-as “para se dar conta de nós, do mundo, dos sentimentos e sensações que se vão dentro de nós, empurrando-nos para a frente... e comungam de uma mesma vontade de encher o mundo de boas perplexidades”. De tão inspirados, seus textos me parecem estar por aí desde sempre, aguardando quem os captasse. Sua caneta é a antena de recepção.
Invejo-lhe a capacidade de imergir na condição humana através da trivialidade, de falar da alma com a leveza de quem brinca com um dominó de palavras. Cartas não são jurássicas, tampouco seus cultores têm a ver com dinossauros. Elas sobreviverão ao cometa da pressa e das mensagens curtas, escaparão à cratera da insensibilidade. Porque nos conduzem, pelas trilhas de nossa humanidade, ao horizonte de nós mesmos.
segunda-feira, 13 de julho de 2015
O ASSALTANTE DE QUASE 15 ANOS
Meu nome é Washington. Vou fazer quinze anos. Vivo
de arrombar carro pra levar o som. Ataco sempre com um amigo. A gente põe o
joelho no vidro do passageiro, perto da maçaneta, puxa pra fora a parte de cima
da porta com as mãos ou um pé de cabra. É moleza. Porta de carro parece angu,
dobra na hora. Quando surge a fresta, enfio o braço lá dentro, destravo, abro, e
aí começa a correria. Tenho de tirar o som o mais rápido possível. Então
arrebento o console sem dó. Não posso demorar mais de um minuto e meio, senão
me ferro. O dono fica bravo duas vezes: tem de comprar porta nova e som novo.
Acho o serviço legal. Adrenalina pura. Cada carro é
um desafio diferente, a gente fica viciado, quer aumentar o risco, começa a
acreditar que é o melhor da praça, aí se estrepa. Então bom mesmo é pegar a
mercadoria bem depressa, arrebentando tudo, e sumir. A parte ruim é o preço que
eles pagam. Na loja, um som chique vale oitocentos, até mil. O receptador não
dá mais que cinquenta. É sacanagem, mas tenho de aceitar, senão vou vender pra
quem? De vez em quando, aparece um rico que foi roubado e quer repor. Aí eu
faturo até cem pratas.
No sábado, me dei mal. Eu e o Ratinho estávamos
começando um serviço, apareceu a frestinha na porta, enfiei a mão pra destravar,
aí apareceu um sujeito passeando com um cachorro policial, o covarde do Ratinho
se mandou, sem a força dele a porta voltou pra trás e eu fiquei preso pelo
cotovelo. Tentei de todo jeito me livrar, não consegui. A pressão no braço
começou a prender o sangue, fiquei com medo, então não teve jeito: comecei a
gritar socorro. Surgiu gente em tudo que é janela dos prédios no quarteirão.
Um minutinho depois, eu estava rodeado por umas
vinte pessoas. Uma velha berrava: “Esse bandido é o Washington, que me roubou
faz cinco meses. Até hoje tiro dinheiro da aposentadoria pra pagar o som que
você levou, viu, seu bandido? Esse aí, gente, não tem mais jeito, só bala
resolve”. Um gordo respondeu: “Matar um garoto por causa de um aparelho de som?
Em que mundo estamos, minha senhora? Pra isso existe a lei”.
Aí chegou o dono do carro, e o tempo esquentou de
vez. Quando viu a porta retorcida, ele quis me dar porrada. Uma mulher gritou:
“Se encostar a mão nesse menino, eu te denuncio. Ele é uma vítima dessa
sociedade cruel, desses nossos governos corruptos, da falta de emprego. Aposto
que ele rouba pra matar a fome!”. Senti uma pontada de importância. A dona
quase apanhou por minha causa. Claro que eu não disse pra ela que eu queria
mesmo é um tênis Nike, superlegal, que vi na televisão. Tão legal que eu tinha
de ter. Tinha de ter. Precisava pegar só uns sons pra comprar.
A patrulhinha da polícia me salvou. O sargento
desceu e foi logo dizendo: “Pô, Washington, você de novo?”. Ele fez que me
levava pra casa, mas, como não tenho casa, me soltou três ruas pra cima,
avisando: “Toma jeito, menino, senão ainda te enchem de bala”.
Fiquei sabendo que apagaram o Ratinho com onze furos
no fim de semana. Ele deu bandeira. Eu sempre achei que não tinha medo da morte,
porque minha vida não vale nada, mas agora sei que tenho medo sim. Não quero
acabar igual o Ratinho, mas não consigo parar de roubar, preciso da grana e da
adrenalina. Só de pensar, eu sinto um frio na barriga. O pior é que eu não sei
como sair dessa.
Pouco tempo depois que publiquei esta crônica, em 1998, Washington foi encontrado morto. Também tinha 11 perfurações de balas. Acabara de completar 15 anos. Hoje estaria com 33.
sábado, 11 de julho de 2015
O MEU TEMPO
No meu tempo, os verbos
amar, gostar e querer estavam tão encobertos pela crosta da urgência, da
competição e da luta pelo dinheiro, que ficavam relegados a segundo plano.
Causavam mesmo certa descrença e vergonha quando abordados. Receava-se admitir
a paixão e passar por démodé ou
louco. No entanto, ao refletir por um momento, as pessoas queriam amar, gostar,
querer – e apaixonar.
No meu tempo, vencida a
resistência inicial, em sua maioria as mulheres amavam os homens. A recíproca
era verdadeira. Encontravam-se e desencontravam-se dentro das limitações do
convívio. Cinderelas e príncipes encantados esforçavam-se para transformar
sonhos em realidade. No
meu tempo – isso era fundamental –, todos buscavam sonhos. Sem eles, ninguém
vivia.
Elas adoravam ser
cortejadas. Algumas, da boca para fora, negavam. Outras ameaçavam acusações de
assédio sexual, mas, na hora certa e na dose certa, rendiam-se aos galanteios.
Afinal, conduzidos pela programação ancestral, eles e elas no fundinho só
pensavam naquilo. O que, aliás, não era prerrogativa de meu tempo.
No meu tempo, as mulheres
temiam envelhecer, pois se cultuavam a juventude, as curvas perfeitas e um
ideal de beleza que raramente acontecia na natureza. Inseguras, elas se
esqueciam de que todas queriam amar, a feia, a bela, a magra e a gorda.
Terrível palavra esta no meu tempo. Mais que cantada grosseira, mais que
xingamento, chamá-las de gorda desmoronava a personalidade, demolia o ego,
desestruturava a vida. Até as magras se julgavam obesas. Daí o cumprimento
então em voga, meio ridículo, reconheço: “Como você emagreceu, querida!”.
Adoravam ouvir isso.
Aliás, no meu tempo,
todas adoravam ser ouvidas (eles também, reconheço). O atalho para a conquista
passava pelo interesse genuíno em escutá-las. Em questão de minutos, eles
compreendiam quão interessantes elas eram, e uma paixão de verdade com
frequência acontecia.
No meu tempo, os jovens
tinham muitas certezas; os de idade mais avançada, nem tantas. Os primeiros
queriam mudar o mundo; estes, mudar a si mesmos. Uns e outros raramente
alcançavam o intento.
No meu tempo, a vida era
de uma simplicidade assustadora. Tão assustadora que se gastavam vidas na
tentativa de adicionar-lhe teses, teorias, modelos, outras vidas.
O meu tempo, desprovido
do ufanismo e dos penduricalhos, era igual a todos os outros.
O meu tempo é hoje.
sexta-feira, 10 de julho de 2015
A ARTE DA BUSCA
Os indianos desenvolveram a idéia, comum a vários
povos, de que o verdadeiro mundo é o dos sonhos. A vigília não passaria de uma
ilusão – ou maya. Entre os japoneses,
os mortos continuam tão presentes que têm até um altar em casa. No dia a dia,
marcamos as horas com precisão atômica, embora alguns teóricos neguem a
existência do tempo. Na física quântica, duas partículas virtuais, separadas
por milhões de anos-luz, reagem instantaneamente ao estímulo aplicado a apenas
uma delas. Partícula virtual, aliás, é um fantasma que surge do nada, desde que
o equilíbrio energético se mantenha. Em medicina, placebos bem recomendados
costumam funcionar melhor que os remédios adequados. Milhões de pessoas
acreditam que seu destino esteja nos astros, nos búzios, num pé de coelho, numa
reza, numa relíquia de santo, numa promessa difícil ou em três batidas na
madeira.
Disso tudo surge a velha pergunta: o que é a realidade? Percebemos você e eu a mesma
coisa? O mongol da estepe, o sherpa do Himalaia, o ianomâmi da Amazônia e o
corretor de ações em Wall
Street enxergam o mesmo mundo? O asceta e o cientista vivem
em planetas diferentes? Quem possui o melhor ponto de vista? Antes disso, o que
significa “melhor”?
A compreensão do que acontece ao nosso redor
constitui uma busca antiga, talvez infrutífera, balizada pela questão: nós
descobrimos ou inventamos a realidade?
A ciência, que se julga objetiva, acata muita
subjetividade, desde a admissão de novidades por parte do establishment até o intransponível problema da limitação dos
sentidos e do cérebro. Às vezes, parecemos criar a realidade de acordo com a
nossa fisiologia ou anatomia. Vivemos num estado simultâneo de sim e não,
palpável e onírico, como no dilema quântico do gato de Schrödinger, em que o
felino pode estar vivo e morto, só resolvido quando um observador examina o
animal de perto. Mas o que é o observador, senão a presença da subjetividade?
A Teoria da Relatividade ganhou esse nome também
porque se faz relativa ao observador. Entretanto, existem discrepância
profundas entre ela e a física quântica, a ponto de se cogitar que uma das duas contenha
falsas premissas. Ou ambas. Quando leio a respeito das seis, onze ou vinte e
seis dimensões que comporiam o Universo, lembro-me do sistema ptolemaico e suas
epicicloides que tentavam remendar uma concepção falida.
Por outro lado, não podemos contar com forças
sobrenaturais. Há séculos terminou a era da magia. Amuletos, poções milagrosas,
palavras secretas e passes não alteram o curso dos eventos, assim como abençoar
carteiras de trabalho não traz o desempregado de volta ao serviço. Tampouco
dedicar-se a dogmas, dízimos e rituais garante saúde, dinheiro e
felicidade.
A dúvida quanto à natureza da realidade tem enorme
vantagem. Enquanto procuramos soluções, abrimos portas – e a vida se torna mais
ampla, complexa, colorida, saborosa. Descoberta ou invenção, a busca da
realidade é a suprema arte do ser humano.
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quinta-feira, 9 de julho de 2015
UMA LÉSBICA MARAVILHOSA
Você tem medo da erudição e do amor
gay? Detesta, por exemplo, livros com citações de dezenas de autores, em
diversas línguas, odeia falar sobre uma poeta morta há dois mil e tantos anos
que, para complicar as coisas, escrevia em grego e era lésbica? Você
mergulharia numa obra que compara a linguagem de um poema escrito seis séculos
antes de Cristo com a linguagem em voga dois séculos antes e dois depois de
Cristo, mais as críticas feitas a esse poema nos tempos medievais e modernos?
Você perderia tempo com a palavra grega hetaira
que, em quatrocentos anos, deixou de significar “amiga e companheira” para
virar “prostituta”? Você acha tudo isso discussão de sexo de anjo?
Se você tiver um pouco de paciência,
essa erudição pode se transformar em grande prazer. Por acaso, caiu em minhas
mãos o livro Eros, Tecelão de Mitos,
da Editora Iluminuras, escrito pelo poeta e erudito Joaquim Brasil Fontes, no
qual ele resgata a poesia de Safo de Lesbos.
Sim, ela mesma. Safo de Lesbos, a
grega que enaltecia o amor entre as mulheres. Gay assumida. Com ela nasceu a palavra lésbica. Faz dois mil e
seiscentos anos que Safo encanta e assusta as gerações. A julgar pelo falso moralismo
atual, hoje a apedrejariam. Era grande poeta. Sensível, sintética, terna, profunda.
Pena que muito de sua obra se perdeu. Joaquim Fontes, sem trocadilho, bebe nas
fontes originais e oferece os versos sáficos no ponto de consumo, no melhor
estado de conservação possível.
Além da beleza intrínseca da obra de
Safo, em que a paixão e o cotidiano se mesclam, a cultura do autor de Eros, Tecelão de Mitos nos proporciona momentos de
deleite e informação. Para completar, voamos ao passado e conhecemos a vida de
quase três milênios atrás.
Erudição não é bicho papão. Muito
menos Safo de Lesbos. Sua poesia, corriqueira na Grécia, era curtida pelo povo.
Perdemos nós o requinte intelectual ou adquirimos um prurido moralista idiota? Pior
ainda: aconteceram-nos ambas as coisas?
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quarta-feira, 8 de julho de 2015
A INCOMPATIBILIDADE ENTRE A ARTE E A CIÊNCIA
Não
vejo qualquer conflito entre a arte e a ciência, duas ferramentas para
interpretar o mundo. Ambas se originam em nosso cérebro, sempre ocupado a construir
modelos para tudo, das galáxias a complôs para depor presidentes. O
artista enxerga o mundo de maneira diferente do cientista, porém um e outro
avançam nossa compreensão da realidade, realidade que foge entre
nossos dedos e logo será reinterpretada ou reinventada. Equações da física saem de moda com a mesma frequência que estilos literários. Somos volúveis como nuvens.
Trafegar com desenvoltura entre a arte
e a ciência é, para mim, um modo de aumentar a curtição da vida. Dobra-se a curtição, no mínimo. Às vezes, o resultado é maior que a soma das partes. Por isso,
prezo muito os autores com sensibilidade e, ao mesmo tempo, curiosidade
científica. Por exemplo, Italo Calvino. Ele se empolga tanto com o espaço cósmico
quanto com a neve que cai com suavidade nos Alpes. Uma prova é seu livro de
ensaios Seis Propostas para o Próximo
Milênio, escrito pouco antes de sua morte, em 1985.
Seis
Propostas para o Próximo Milênio talvez seja a obra mais criativa que
deixou. Um legado da alma. Uma herança da razão. Uma obra do cérebro. Um parto das mesmas células que nos fazem astrofísico ou escritor. Nele Calvino mostra como a leveza, a rapidez, a
exatidão, a visibilidade e a multiplicidade podem aumentar nossa percepção.
Graças a essas cinco qualidades, seu texto se aproxima da precisão científica, sem perder a sensibilidade artística.
Calvino funde no livro os dois
hemisférios do cérebro, cada qual a interpretar a realidade sob uma ótica
diferente, jamais incompatível. Ambos, no entanto, dispostos a nos proporcionar uma ideia mais abrangente da vida. Sobretudo de sua graça e de sua beleza. A graça e a beleza que, hoje em dia, tentamos encobrir.
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terça-feira, 7 de julho de 2015
ECOLOGIA DE QUINTAL
Só me dou conta do limoeiro do quintal quando os
amigos elogiam seus frutos. Dizem que são os mais suculentos que conhecem.
Claro, trata-se de doce gentileza. Amigos se excedem em amabilidades mesmo nos
mais amargos assuntos.
Numa tarde dessas, observei que as folhas da
árvore estavam amarelando, talvez por falta d’água. Abri a mangueira, comecei a
molhá-las. Sem cerimônia, dois sebinhos apareceram para matar a sede e tomar
banho. Num canto, um sabiá ressabiado preferiu se fartar com as gotas que
escorriam. Um beija-flor preto-esverdeado, à maneira de animais
de circo que saltam através de aros, cruzou o jato em sua parte mais alta, numa
curtição de dar inveja.
Notei que os pássaros vivem ao redor do limoeiro. Por quê? Examinei a árvore de perto. Formigas de diferentes espécies andavam pelo tronco
em ritmo de dia de semana no centro da cidade, embora fosse domingo, o que me mostrou como a natureza passa muito bem sem os conceitos humanos. Algumas delas
se alimentavam de uma secreção oriunda do dorso de pulgões, uns bichinhos
miúdos demais para a produção de tanto líquido. Verdadeiras vacas na ordenha. Deviam
trocar o leite por proteção.
Junto às flores, outros pulgões se apegavam às
pétalas, em tal quantidade que formavam manchas negras. Não ligavam para as abelhas
com as patas douradas de pólen. Marimbondos, dos pequenos e dos cavalos, zuniam
sem saber onde pousar. Numa teia, debatia-se um inseto geométrico, perfeito
losango vivo. Uma aranha o rondava para
banquetear-se. Taturanas e centopeias passeavam pela ramagem coberta de líquen,
aparentemente perdidas. Sob uma folha, um inseto envolto por fios brancos,
miniatura de porco-espinho, tecia seu casulo.
Descobri por que os pássaros ficavam por ali. Era
seu mundo, pequeno, com regras peculiares, e eu o flagrara no dia a dia. Embora restrito ao meu quintal, esse mundo se submetia às velhas leis da
natureza. Ampliei a escala da observação. O planeta é um limoeiro gigante, no
quintal de todos: os seres vivos respiram o mesmo ar, retiram da terra seu
sustento, a ela tudo devolvem. Estamos no mesmo pé. A única diferença talvez
seja a consciência, que produziu em mim um sentimento de irmandade com as plantas
e os animais.
Ao me ver integrado à imensa engrenagem da vida, não
contive o encantamento. Eu jamais ficaria sozinho no mundo. Era tudo – e tinha tudo
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